domingo, 13 de setembro de 2009

Soneca


Sônia estava quase na guimba. A cerveja quente a lembrava que, dali mais um pouco, ela perderia a hora no dia seguinte. Tinha uma entrevista de trabalho. Era o quinto mês sem depósito em conta, sem contracheque, sem hora extra no fim de semana. Estava descansada até demais. Virou habitué do Bar da Toca, boteco tradicional com direito a copo oitavado, bêbados esbravejando sobre a corrupção e lamentando a partida da pessoa amada.

O problema era que ela gostava muito de não trabalhar. Sempre que se via diante de um desafio laboral, caia no sono. Sem grandes qualificações, a moça só conseguia trabalhar por pistolão nas pequenas fábricas de seu tio Zildo- empresário mequetrefe, estelionatário, usuário de óculos ray-ban paraguaios e cabelos tingidos Acajú-púrpura.

Ela durava pouco nas linhas de montagem. Em um dos empregos, depois de ter sido chamada atenção pelo supervisor (que a tinha acusado de ter nascido com duas mãos esquerdas e meia cabeça de vento), adormeceu por vinte e cinco minutos no posto. No dia seguinte, o tio recebeu mais de cinquenta ligações das lojas distribuidoras de lingerie: reclamavam que os sutiãs tinham chegado sem fecho e com bojo só do lado esquerdo. A gota d’água para Zildinho Teco-Teco (para os amigos) foi a semana que ela, sonolenta por estar em novo posto, montou mais de cem caixas de bombons sortidos só com os de ameixa e os de passas ao rum. Foi um desastre com direito a choro, vela e fila de devolução virando o quarteirão.

Quanto a tal entrevista do dia seguinte, cabe dizer que era a primeira oportunidade de emprego que aparecera para Sônia sem a ajuda do titio. Conhecera na fila da padaria um velhinho amolador de facas que precisava de alguém para acompanhá-lo todas as manhãs ao parque, ajudar com as finanças, monitorar o horário de seus remédios e deixá-lo ganhar nas partidas de xadrez. Seu Izidro, muito consciencioso e exigente com seus funcionários, quis entrevistar a moça para formalizar a contratação- nada preocupante, afinal, o cargo requereria pouco mais do que boa vontade, pontualidade e noções instrumentais de matemática.

Dez da manhã, ainda afetada pelos cascos de pão-líquido esvaziados, Sônia apareceu no escritório-depósito-morada de seu Izidro. Conversaram francamente, o velhinho ressaltou a importância das vitórias no xadrez, a moça comunicou da sonolência crônica. Tudo azul, falou o velho, nada que o apito de sua maquinaria antiga, duas xícaras de café e uns petelecos não resolvessem. Foi uma parceria feliz e sem carteira assinada.

6 comentários:

  1. gostei...final feliz e normal...acho que todas as estórias andam precisando disso...

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  2. onde vc arrumou esses cascos de pão-líquido ?

    gosto da linguagem , criativa , colorida , qualificada .. !
    acho q merece carteira assinada , eu assino embaixo !

    aabbççççç

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  3. Acho q esse mundo está cheio de Sôniasssszzzzzzz..!!! ai que soninho!!! rs! Parabéns, adorei!!! Muito bom mesmo!

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  4. Querida Foca, estamos ficando todos despenteados sem as suas histórias!

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  5. Ouw, desculpa chegar assim. Mas você é a mesma da campanha Cultura Inglesa?

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