quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Parapente

Marina já havia esquecido o que era um namorado. Há tempos andava focada, direcionada, eficiente, organizada, encalhada. Não sabia bem porque. A verdade é que se considerava um excelente partido: tinha um sorriso malandro, curvas que parariam pelo menos um pequeno trânsito de viela, e pitadas de sarcasmo dignas de um Lord inglês. O problema é que sofria de um senso crítico agudo, quase corrosivo, capaz de destroçar qualquer homem. Jaiminho tinha a boca maior que o cérebro. Carlos era bonito demais para compromisso, ou pelo menos isso era o que ele achava. Evandro era até um cara bacana, mas tinha mania de arrotar em situações inoportunas.

Sem perceber, tinha substituído a companhia masculina pelos esportes radicais. Praticava escaladas de alta periculosidade, fazia esqui- aquático com um esqui e um braço para o alto, e, quando dava na telha, pulava de paraquedas. Em casa, ela realizava as tarefas domésticas da maneira mais complicada possível. Suas sagas preferidas eram: tomar sopa com garfo e esfregar o chão com uma escova amarrada em cada pé. Isso quando não resolvia fabricar seu próprio xampú, lavar todas as cortinas e tapetes à mão com meio tablete de sabão de coco, ou dobrar as toalhas em formato de origami.
Suas amigas, preocupadas, tentavam apresentá-la a todos os homens que conheciam (até os ex-maridos estavam na lista). Seus amigos, não só preocupados mas também animados com o turbinado preparo físico da esportista, se ofereciam para qualquer necessidade. Mas, Marina fingia que nem era com ela... estava perdidamente apaixonada pelo seu parapente.

Estava tudo azul para ela, até que, em uma bela manhã de domingo, quebrou a perna. No meio de seu treino de Le Parkour, reparou nos braços de seu instrutor e caiu estatelada no chão.
Mauro, o instrutor, tinha vinte nove anos, quase dois metros de altura, três graduações e adorava mulheres neuróticas. Ao ver Marina em apuros tomou-a em um de seus braços e levou-a ao hospital.
Foi amor à primeira queda.
Pra ele.
Em questão de segundos, Marina já havia descartado Mauro como possibilidade: era alto demais e gostava de programas de auditório.

domingo, 13 de setembro de 2009

Soneca


Sônia estava quase na guimba. A cerveja quente a lembrava que, dali mais um pouco, ela perderia a hora no dia seguinte. Tinha uma entrevista de trabalho. Era o quinto mês sem depósito em conta, sem contracheque, sem hora extra no fim de semana. Estava descansada até demais. Virou habitué do Bar da Toca, boteco tradicional com direito a copo oitavado, bêbados esbravejando sobre a corrupção e lamentando a partida da pessoa amada.

O problema era que ela gostava muito de não trabalhar. Sempre que se via diante de um desafio laboral, caia no sono. Sem grandes qualificações, a moça só conseguia trabalhar por pistolão nas pequenas fábricas de seu tio Zildo- empresário mequetrefe, estelionatário, usuário de óculos ray-ban paraguaios e cabelos tingidos Acajú-púrpura.

Ela durava pouco nas linhas de montagem. Em um dos empregos, depois de ter sido chamada atenção pelo supervisor (que a tinha acusado de ter nascido com duas mãos esquerdas e meia cabeça de vento), adormeceu por vinte e cinco minutos no posto. No dia seguinte, o tio recebeu mais de cinquenta ligações das lojas distribuidoras de lingerie: reclamavam que os sutiãs tinham chegado sem fecho e com bojo só do lado esquerdo. A gota d’água para Zildinho Teco-Teco (para os amigos) foi a semana que ela, sonolenta por estar em novo posto, montou mais de cem caixas de bombons sortidos só com os de ameixa e os de passas ao rum. Foi um desastre com direito a choro, vela e fila de devolução virando o quarteirão.

Quanto a tal entrevista do dia seguinte, cabe dizer que era a primeira oportunidade de emprego que aparecera para Sônia sem a ajuda do titio. Conhecera na fila da padaria um velhinho amolador de facas que precisava de alguém para acompanhá-lo todas as manhãs ao parque, ajudar com as finanças, monitorar o horário de seus remédios e deixá-lo ganhar nas partidas de xadrez. Seu Izidro, muito consciencioso e exigente com seus funcionários, quis entrevistar a moça para formalizar a contratação- nada preocupante, afinal, o cargo requereria pouco mais do que boa vontade, pontualidade e noções instrumentais de matemática.

Dez da manhã, ainda afetada pelos cascos de pão-líquido esvaziados, Sônia apareceu no escritório-depósito-morada de seu Izidro. Conversaram francamente, o velhinho ressaltou a importância das vitórias no xadrez, a moça comunicou da sonolência crônica. Tudo azul, falou o velho, nada que o apito de sua maquinaria antiga, duas xícaras de café e uns petelecos não resolvessem. Foi uma parceria feliz e sem carteira assinada.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Folha

Folha amarelada e quebradiça. Era o coração da menina. Deixara tudo que era de lágrima e sal guardado entre páginas de um álbum antigo, poeira de vida arquivada e esquecida.

Dispensara poemas, abandonara de vez os sorvetes coloridos e as roupas de tom vibrante. Vivia de bege, cor insípida, austera, vaga.

Era frágil. Já fora sonhadora, gostava secretamente das gargalhadas da avó, dos dedos enrugados de água por muito tempo, das borboletas que flertavam com seu ombro franzino de moça que dispensava bolas e bicicletas. Há tempos, só pensava mesmo. Sua leveza escapara junto com o rubor das bochechas e os arrepios sem frio. Solidão, não solitude.

Certo dia, enquanto se equilibrava no meio fio cantarolando bossas, sentiu um calafrio. Logo veio a tonteira, em seguida o nada. Cabeça na placa de cimento. Acordou entre as mãos de uma senhora gorducha e florida, de lábios rosados e sobrancelhas pontudas. Correu muda de volta para seu quartinho de quina. No caminho para a casa foi observada, sem perceber.

Clarice sempre tinha sido alheia aos olhos que a cercavam. Era de uma beleza tímida , perdia fácil para toda e qualquer exuberância ou desembaraço que vinha com um par de pernas e cabelos compridos.

Fato é que do desmaio à fuga ela tinha sido seguida por olhos interessados.

Conheceu o rapaz. Tudo pareceu ótimo por cinco minutos, até ele desaparecer.

Dia seguinte ela desfaleceu de novo. Agora, sem socorro. Dormiu com as borboletas.

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Tapioca

Desesperada, Bianca errava pela casa, cachaça na mão, confundindo quina com porta. Cama, comida, banho, tudo era detalhe. A mais recente memória lúcida da mulher era ter posto do lado de fora da porta o último par de sapatos do cidadão, o dono da pinga.

A embriaguez era inevitável, senão necessária.

Mais impaciente que velho em fila de banco, ela era daquelas geniosas, do tipo que discute até com criado mudo. Sempre foi descrente com a classe masculina. Cansada dos casos com bonitinhos mas ordinários, tinha se conformado com enlaces casuais, encontros quase diários com amigos e whiskey, e o ocasional filme B carnificina pra relaxar.

Até que surgiu o cidadão, o dos cabelos. Deixou-a mais bagunçada que cantina de primário em dia de torneio. Ele falava só o suficiente e isso a enlouquecia. Juntos, não dormiam por horas. Ela emagrecia só de vê-lo sair do elevador.

Por causa do pavio curto da moça, as brigas eram intermináveis. Andavam pela casa de sapato fechado, tantos eram os pedaços de porta retrato pelo chão.

A mais recente discussão tinha começado com a pasta de dente destampada e culminou com as coisas do rapaz caindo pela janela do terceiro andar. Dele só tinha sobrado o cheiro bom nos panos e um par de botas de escalada.

Fato é que Bianca já estava bebendo por cinquenta e duas horas ininterruptas, ora olhando pro calçado tamanho quarenta e dois, ora comendo sorvete de tapioca (tinha fixação por derivados de mandioca).

Estava lá, vagando em zigue-zague, quando, num estalo, toca a campainha.

Dizem que beijo brigado dá mais frio na barriga.




segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Petisco

Tuco era cheio de si. Do tipo que emoldura carta de ex-namorada apaixonada e guarda um espelho em cada bolso, só pra garantir. Curtia garotas- troféu e carros de duas portas com cavalos de sobra. Um bandido. Desde os oito anos de idade era o chefe do grupo, o mentor intelectual das travessuras. Era dotado de uma safadeza digna de romances baratos de banca de jornal. Não se descabelava por mulher alguma, mas amava todas como um autêntico filho da democracia torta de seu país.

Um dia, conheceu a boca e as cadeiras de Alzira. Mulher que fazia até tamanduá dar cambalhota.

Foi um desespero. A pequena fazia e acontecia com o rapaz. Não aparecia nos encontros, deixava-o plantado esperando telefonemas e recados, andava pelas ruelas com saias impossíveis e gargalhava alto balançando os cabelos que escorriam queimados de sol até a cintura.

O homem fazia de tudo pra chamar atenção, inventava admiradoras psicopatas, passava o batom da mãe no colarinho, usava roupas amassadas e cuecas pelo avesso. E Alzira... neca. Continuava exibindo suas coxas quase infinitas na sinuca de sexta-feira.

Sem saber ao que recorrer, desferiu o último golpe: pediu a moça em casamento. Ela fez que não sabia, falou da sua pouca idade, de seus desejos de estudar hotelaria em Miami e de seu amor incondicional pela boemia. No fim das contas, topou.

Tuco fez os votos e pôs os pingos nos Is: de segunda à quarta ela seria só dele; às quintas iriam juntos à gafieira- felicidade de dia útil, coisa e tal-; fins de semana... se encontrariam pontualmente às sete da manhã na padaria da esquina- café da manhã matrimonial é sagrado.

É... Com ela até meia felicidade bastava.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Jujubas


Engraçado isso. Temporal. Água pontilhada. Encharcada (vestido- armadura de úmido algodão).

Dois.

Sentados no carro. Se pudesse, lá choveria também. O beijo mordido, daqueles que a boca fraqueja e hesita. O ar escapa mais rápido. Já não tinham mais a menor ideia da hora, esqueceram-se dos compromissos.

Se viram só uma vez antes daquele dia, ao acaso numa feira de arquitetura. Ele estava lá para cortar o caminho, ela para ir ao banheiro- no fundo, foram porque acharam que seria um bom lugar para conhecer pessoas novas, já que a moça era bibliotecária e o rapaz contador.

Na jarra de jujubas do stand cinco as mãos se encontraram. Trocaram frases e gestos típicos de dois estranhos atingidos pela timidez e o tesão súbito. Sem assunto, resolveram coexistir silenciosamente enquanto andavam pelos corredores repletos de mostruários de azulejo e amostras de estofado (era uma feira meio fajuta). O encontro foi marcado para a semana seguinte, o velho chopp- ele queria parecer difícil e ocupado, apesar de estar com suas bochechas quase roxas, as palmas da mão suadas e de ter acabado de sofrer a quinta crise nervosa de risos com fungadinha no final.

No derradeiro dia, não chegaram nem no bar. O enlace começou segundos depois dele ajeitar o retrovisor. Logo, o carro ficou pequeno demais. Saíram. Clara, normalmente envolta por paredes e poeira, atirou-se no meio da rua em tempestade, puxando Marcos.

Que os carros desviassem, era assunto sério.

Pneumonia é uma ova.

Atiraram os óculos no meio fio; os botões da camisa do rapaz já eram lenda; a saia da moça suspensa e atravessada pela cintura. A buzina de automóveis e o vento intermitente de capotas passando, para os dois, eram nada mais que chuva lateral. A cada rompante de água os corpos se aproximavam um pouco mais (quando a coisa tá boa os espaços-entre sempre podem diminuir ). Nada mais importava. Só o beijo.

Céu é beijo debaixo de chuva.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Boléia

Mirna andava com um aperto. Chato pra burro. Estava sozinha há tempos, tendo como companhia somente Heleneta- pulga-residente de sua orelha esquerda-, Bonifácio- gato vira-lata de meio bigode e rabo de toco-, e Emerinda- tia postiça que falava em língua de provérbios inventados (inspirados livremente em seus romances de estrada).

A tia emprestada morava no sobrado da esquina, um casebre que mais tinha céu do que teto. Era gente boa, sabia fazer uns quitutes alemães que levantavam o astral até de vendedor de enciclopédia em terra de analfabeto. A velhota sacudida adorava ouvir sambinha de esquina, mexer os quartos em ritmo de lambada e suspirar casualmente sua sabedoria de botequim de posto: “Quem tudo quer... tudo pede!”*, “Em terra de cego, quem tem um olho é caolho...”*.

No fundo, Mirna sabia que tudo era questão de tempo. O problema é que essa indefinição de ponteiro e métrica estava deixando os hormônios da moça alterados. Ela já tinha tentado de tudo pra amenizar esse perrengue físico-emocional. O corredor da moça era um tívole pra formigas: latas de leite condensado vazias e lambidas; maçãs meio mordidas; cascas de amendoim torrado; migalhas de broa e Apfel Strudel, e assim por diante. Dona Emerinda tentava de tudo pra ajudar a menina, da gastronomia até os conselhos eventuais:

“Não esquente Mirna, casar é bom. Morrer queimado é melhor ainda!* Saiba que as mulheres tem duas armas terríveis: cosméticos e lágrimas*. E se no fim das contas tudo der errado, lembre-se: A união faz o açúcar.*”

Sem perspectivas a pequena devoradora de doces vagava pelas ruelas chutando lata vazia e soprando teia de aranha. Até que...

Surge uma amendoa. Tropeçou. A semi-queda trouxe a atenção de Fabrício, turista petropolitano em busca de aventura. A verdade é que estava perdido; trazia seu equipamento de rapel nas costas e já completava a quinta volta pelo bairro desconhecido.

Um não era o sonho do outro, mas no fim das contas, como dizia Emerinda, “antes tarde do que mais tarde*, agarra o que aparecer e vai pro abraço.”


*Frases tiradas de http://www.osvigaristas.com.br/frases/caminhao/. Vale a pena.