sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Tapioca

Desesperada, Bianca errava pela casa, cachaça na mão, confundindo quina com porta. Cama, comida, banho, tudo era detalhe. A mais recente memória lúcida da mulher era ter posto do lado de fora da porta o último par de sapatos do cidadão, o dono da pinga.

A embriaguez era inevitável, senão necessária.

Mais impaciente que velho em fila de banco, ela era daquelas geniosas, do tipo que discute até com criado mudo. Sempre foi descrente com a classe masculina. Cansada dos casos com bonitinhos mas ordinários, tinha se conformado com enlaces casuais, encontros quase diários com amigos e whiskey, e o ocasional filme B carnificina pra relaxar.

Até que surgiu o cidadão, o dos cabelos. Deixou-a mais bagunçada que cantina de primário em dia de torneio. Ele falava só o suficiente e isso a enlouquecia. Juntos, não dormiam por horas. Ela emagrecia só de vê-lo sair do elevador.

Por causa do pavio curto da moça, as brigas eram intermináveis. Andavam pela casa de sapato fechado, tantos eram os pedaços de porta retrato pelo chão.

A mais recente discussão tinha começado com a pasta de dente destampada e culminou com as coisas do rapaz caindo pela janela do terceiro andar. Dele só tinha sobrado o cheiro bom nos panos e um par de botas de escalada.

Fato é que Bianca já estava bebendo por cinquenta e duas horas ininterruptas, ora olhando pro calçado tamanho quarenta e dois, ora comendo sorvete de tapioca (tinha fixação por derivados de mandioca).

Estava lá, vagando em zigue-zague, quando, num estalo, toca a campainha.

Dizem que beijo brigado dá mais frio na barriga.




segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Petisco

Tuco era cheio de si. Do tipo que emoldura carta de ex-namorada apaixonada e guarda um espelho em cada bolso, só pra garantir. Curtia garotas- troféu e carros de duas portas com cavalos de sobra. Um bandido. Desde os oito anos de idade era o chefe do grupo, o mentor intelectual das travessuras. Era dotado de uma safadeza digna de romances baratos de banca de jornal. Não se descabelava por mulher alguma, mas amava todas como um autêntico filho da democracia torta de seu país.

Um dia, conheceu a boca e as cadeiras de Alzira. Mulher que fazia até tamanduá dar cambalhota.

Foi um desespero. A pequena fazia e acontecia com o rapaz. Não aparecia nos encontros, deixava-o plantado esperando telefonemas e recados, andava pelas ruelas com saias impossíveis e gargalhava alto balançando os cabelos que escorriam queimados de sol até a cintura.

O homem fazia de tudo pra chamar atenção, inventava admiradoras psicopatas, passava o batom da mãe no colarinho, usava roupas amassadas e cuecas pelo avesso. E Alzira... neca. Continuava exibindo suas coxas quase infinitas na sinuca de sexta-feira.

Sem saber ao que recorrer, desferiu o último golpe: pediu a moça em casamento. Ela fez que não sabia, falou da sua pouca idade, de seus desejos de estudar hotelaria em Miami e de seu amor incondicional pela boemia. No fim das contas, topou.

Tuco fez os votos e pôs os pingos nos Is: de segunda à quarta ela seria só dele; às quintas iriam juntos à gafieira- felicidade de dia útil, coisa e tal-; fins de semana... se encontrariam pontualmente às sete da manhã na padaria da esquina- café da manhã matrimonial é sagrado.

É... Com ela até meia felicidade bastava.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Jujubas


Engraçado isso. Temporal. Água pontilhada. Encharcada (vestido- armadura de úmido algodão).

Dois.

Sentados no carro. Se pudesse, lá choveria também. O beijo mordido, daqueles que a boca fraqueja e hesita. O ar escapa mais rápido. Já não tinham mais a menor ideia da hora, esqueceram-se dos compromissos.

Se viram só uma vez antes daquele dia, ao acaso numa feira de arquitetura. Ele estava lá para cortar o caminho, ela para ir ao banheiro- no fundo, foram porque acharam que seria um bom lugar para conhecer pessoas novas, já que a moça era bibliotecária e o rapaz contador.

Na jarra de jujubas do stand cinco as mãos se encontraram. Trocaram frases e gestos típicos de dois estranhos atingidos pela timidez e o tesão súbito. Sem assunto, resolveram coexistir silenciosamente enquanto andavam pelos corredores repletos de mostruários de azulejo e amostras de estofado (era uma feira meio fajuta). O encontro foi marcado para a semana seguinte, o velho chopp- ele queria parecer difícil e ocupado, apesar de estar com suas bochechas quase roxas, as palmas da mão suadas e de ter acabado de sofrer a quinta crise nervosa de risos com fungadinha no final.

No derradeiro dia, não chegaram nem no bar. O enlace começou segundos depois dele ajeitar o retrovisor. Logo, o carro ficou pequeno demais. Saíram. Clara, normalmente envolta por paredes e poeira, atirou-se no meio da rua em tempestade, puxando Marcos.

Que os carros desviassem, era assunto sério.

Pneumonia é uma ova.

Atiraram os óculos no meio fio; os botões da camisa do rapaz já eram lenda; a saia da moça suspensa e atravessada pela cintura. A buzina de automóveis e o vento intermitente de capotas passando, para os dois, eram nada mais que chuva lateral. A cada rompante de água os corpos se aproximavam um pouco mais (quando a coisa tá boa os espaços-entre sempre podem diminuir ). Nada mais importava. Só o beijo.

Céu é beijo debaixo de chuva.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Boléia

Mirna andava com um aperto. Chato pra burro. Estava sozinha há tempos, tendo como companhia somente Heleneta- pulga-residente de sua orelha esquerda-, Bonifácio- gato vira-lata de meio bigode e rabo de toco-, e Emerinda- tia postiça que falava em língua de provérbios inventados (inspirados livremente em seus romances de estrada).

A tia emprestada morava no sobrado da esquina, um casebre que mais tinha céu do que teto. Era gente boa, sabia fazer uns quitutes alemães que levantavam o astral até de vendedor de enciclopédia em terra de analfabeto. A velhota sacudida adorava ouvir sambinha de esquina, mexer os quartos em ritmo de lambada e suspirar casualmente sua sabedoria de botequim de posto: “Quem tudo quer... tudo pede!”*, “Em terra de cego, quem tem um olho é caolho...”*.

No fundo, Mirna sabia que tudo era questão de tempo. O problema é que essa indefinição de ponteiro e métrica estava deixando os hormônios da moça alterados. Ela já tinha tentado de tudo pra amenizar esse perrengue físico-emocional. O corredor da moça era um tívole pra formigas: latas de leite condensado vazias e lambidas; maçãs meio mordidas; cascas de amendoim torrado; migalhas de broa e Apfel Strudel, e assim por diante. Dona Emerinda tentava de tudo pra ajudar a menina, da gastronomia até os conselhos eventuais:

“Não esquente Mirna, casar é bom. Morrer queimado é melhor ainda!* Saiba que as mulheres tem duas armas terríveis: cosméticos e lágrimas*. E se no fim das contas tudo der errado, lembre-se: A união faz o açúcar.*”

Sem perspectivas a pequena devoradora de doces vagava pelas ruelas chutando lata vazia e soprando teia de aranha. Até que...

Surge uma amendoa. Tropeçou. A semi-queda trouxe a atenção de Fabrício, turista petropolitano em busca de aventura. A verdade é que estava perdido; trazia seu equipamento de rapel nas costas e já completava a quinta volta pelo bairro desconhecido.

Um não era o sonho do outro, mas no fim das contas, como dizia Emerinda, “antes tarde do que mais tarde*, agarra o que aparecer e vai pro abraço.”


*Frases tiradas de http://www.osvigaristas.com.br/frases/caminhao/. Vale a pena.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Dedo no bolo

Pisaram no castelo de areia.

Dedo no bolo.

Só que chocolate, mesmo borrado, é bom.

Ela pendura as botas na janela. Pensa em quadros de Malevich. Lembra com meios sorrisos aqueles personagens sem rosto da adolescência. Passava os dias mais calada do que dançante. Do tipo que vê janela de ônibus com trilha sonora de western obscuro. Escolhia música em função dos dentes dos vocalistas. Tinha fixação por roupas que não combinavam. Às vezes doava as roupas novas e usava as meias furadas que herdou da avó.

Pra ela andava tudo azul, tipo anúncio de pasta de dente. A moça andava balançada por um moleque da rua ao lado, daqueles que penteiam o cabelo uma vez por semana e usam blusa ao avesso só pelo mistério. Se encontravam escondido: a mãe do rapaz era do tipo que usava a bíblia até pra fazer torta de maçã.

Mas, sempre vinha uma frase ou um olhar estraga prazeres que fazia descer mosca na sopa. Reprimendas de vogais prolongadas da mãe, as velhas e boas interjeições monossilábicas do velho patriarca, e o franzir de sobrancelhas das tias desocupadas.

Um dia, aos beijos com o rapaz, se deu conta que ele só encontrava com ela às quintas e domingos à noite. Veio o lampejo: será que tinha outra? Ele dizia que fim de semana deprimia, que era dia de dar comida ao Eddy Pop (sua iguana) e repensar a vida. Não colou. Mas como os apertos eram melhores do que o orgulho, ela se fingia convencida.

No fim das contas cansou dessa clandestinidade e conheceu Danilo, homem feito e formado em engenharia. Com esse era tudo uma chatice, mas, ao menos ela tinha as sextas e sábados garantidos... plenos de filmes B, cafunés fajutos e beijocas sem língua.

Manteve o tal almofada por anos... mas toda quinta visitava Eddy.

E seu dono, claro.